quarta-feira, 25 de julho de 2007

Conto: Potinho de Ferro

Chega o homem em casa do supermercado, com os dois braços peludos e musculosos cheios de sacolas. Trazia nelas a lista que fizera na tarde de ontem, logo depois de varrer o chão da cozinha e notar a falta de frutas na cesta que repousa diariamente no centro do cômodo. Ela, a mulher da casa, assistia à seleção masculina de vôlei na televisão e pensava consigo, com uma latinha de cerveja na mão e apoiada sobre a barriga moldada na forma de uma esfirra aberta, que seu namorado bem que poderia ter um belo par de coxas como as daqueles jogadores.

Ele era um homem com qualidades difíceis de encontrar hoje em dia: lavava a louça, limpava a casa, cuidava do cachorro, fazia a comida, arrumava a cama, lustrava os móveis, não deixava respingos e dava descarga. Ela, a pessoa que sustentava a casa financeiramente, era ciumenta, vivia no bar após o trabalho, flatulava à noite na cama, roncava como uma porca e passava, às vezes, dois dias sem tomar banho. Isso frequentemente o incomodava, mesmo porque ambos, o odor e a trovoada, podiam ser percebidos à distância.

Logo após colocar as compras na cozinha, o homem sobe para seu quarto. Despe-se da camiseta laranja, da calça comprada no brechó a preço de banana, e do par de tênis de cadarços pisados e rasgados. Lero-lereia (como a bruxa da Branca de Neve) com o espelho sobre si mesmo e suas milhares de paixões espalhadas pela cidade (cada uma com uma qualidade e um número de telefone diferente) enquanto se prepara para um banho quente.

Ela, a mulher, repara e avalia atentamente os jogadores da seleção. Anota tudo num caderninho que tem especialmente para esse fim. Tenta chegar a uma conclusão, porém fica cada vez mais difícil entre uma dose e outra. Foi-se a dúzia de latinhas. Foi-se a quinta dose de uísque. Foi-se o segundo maço de cigarros. Foi-se o amor pelo namorado.

Quando o banheiro está coberto de fumaça e o ambiente já está quente o suficiente, ele liga o rádio no volume máximo para ouvir sua música preferida (que, coincidentemente, é a música que ela mais detesta), que ele só ouve quando está sozinho em casa. Liga o rádio e cantarola como uma gralha em ato de acasalamento.

De repente, a música que ela mais detesta na vida começa a tocar e a desconcentra dos pensamentos livres de pudor que tinha com o número 6 da seleção. “Ah, desgraçado! Só pode ser você de novo com essa música infernal!”. E bufando sobe as escadas, seus passos podiam ser sentidos de longe para alguém que tivesse o mínimo de sensibilidade táctil. Chega em frente à porta do banheiro e a esmurra:

— Desgraçado! Desliga essa porcaria de rádio!

E um silêncio irritante e barulhento permanece do lado de dentro do banheiro. Tenta novamente:

— Caramba, vamos desligar isso aí? O que cê tá ouvindo não é música, cara! Desliga essa porcaria de Backstreet Boys!

Eis que ele surge de supetão:

— O quê? Quando é o churrasco no Luis? Desculpe-me pela música, não vi que estava em casa.

— Que desculpa esfarrapada. Larga a mão de ser mané, meu filho. Você sabe muito bem que quando tem jogo da seleção eu fico com o caderninho na mão, poxa.

— Olha... pode parar com isso, hein? Tá pensando o quê? Eu te conheço na “tpm”, bem. Não tem porque te provocar, querida. Relaxa, vai. Toma mais uma dose de uísque e vai lá ver seu jogo, que deve estar quase acabando.

Puta que pariu! Quase me esqueci do jogo...

— Então corre, corre, senão eu conto pro seu namorado desse caderninho, hein? Ele não vai gostar nada disso.

Se você contar, já era. Vai ter que arrumar um outro lugar pra morar, bicha desgraçada.

E desceu para a televisão com a cara fechada e seus tropeços pela escada.

Ela e ele: a formiga e a cigarra. Ele entrou no quarto, abriu sua gaveta, pegou um potinho de ferro, sacou a tampa e contou seus trezentos reais guardados para a noitada de drogas e álcool desta mesma noite. Sorriu, guardou tudo como havia encontrado, vestiu-se decentemente e desceu para seu tradicional chá de concentração das sete.

Um comentário:

Fá Fioretti disse...

Desfecho surpreendente nesse conto bem escrito, bem amarrado e que, apesar de não apresentar detalhes descritivos dá ao leitor a capacidade de imaginar as cenas, fisionomias e ambientes. Parabéns Rafa!